2012-01-21

Sonho e Realidade







Ainda há pouco, ao escrever aqui mesmo, para "Reformador", um dos meus artiguetes, tive a atenção despertada para as aspas que os espíritas costumamos colocar em palavras como, por exemplo, morte, ressurreição, inferno, céu, pecado e expressões outras, como vida eterna,, etc.

Isso me levou a pensar nas profundas modificações que se terão fatalmente de operar no a que chamamos cultura, no dia em que a Ciência, desvestida da sua autoritária suficiência dogmática, resolver estudar, com humildade e lucidez, o Espírito humano e comprovar coisas tão elementares e, ao mesmo tempo, tão importantes como a sobrevivência do Espírito, a sua preexistência, a reencarnação e a comunicabilidade entre os chamados "mortos" e "vivos" (aí estão novamente as aspas).

Já imaginou o leitor a revolução que isto vai trazer ao homem comum, ainda imbuído dos preconceitos milenares da ortodoxia teológica?

As conseqüências dessas idéias invadem e sacodem as mais insuspeitadas áreas do conhecimento. Já não quero falar sobre a psicologia e a teologia, que terão de ser inteiramente reformuladas.

Vamos ficar aqui mesmo nas noções mais elementares, nos conceitos do quotidiano, do ramerrão da vida terrena. Terminei outro dia a leitura da história fascinante de uma vida fascinante: a de Erasmo de Rotterdam, o famoso autor do "Elogio da Loucura".

Ao narrar o fim daquela vida tão extraordinária, dedicada ao conceito do humanismo, o biógrafo (Stefan Zweig) escreve que, afinal, "descansava" o grande homem, encontrando a paz. E' possível que tenha de fato o Espírito de Erasmo encontrado a paz, mas não pelo fato de ter "morrido" ou passado para a eternidade.

Na eternidade já estava, embora servido por um corpo físico decrépito e desgastado. Na eternidade estamos todos nós. A rigor, a expressão sobrevivência é inadequada, pois não sobrevivemos - continuamos. Não há uma sobrevida e sim uma nova forma da mesma vida.

Não sei se isso também ocorre ao meu querido leitor, mas a mim, enquanto leio, vou imaginando as "correções" que o futuro fará na História Universal, por exemplo, que terá de ser reescrita com base no conhecimento da interpretação dos dois mundos: o espiritual e o físico.

O que temos diante dos nossos olhos é apenas uma face - e pequena - da realidade. O nosso próprio ser espiritual - já o disse alguém tem a consciência, que apenas aflora como um "iceberg", e o inconsciente, que mergulha, imenso, na sombra do passado.

Neste último é que se inscrevem as nossas experiências anteriores; nesse arquivo milenar é que guardamos, ao abrigo de deformações e de indiscrições - até mesmo de nossa parte -, o fichário do nosso passado espiritual.

Somente quando atingimos um grau adequado de maturidade, temos acesso a esse arquivo, a fim de que as lições que nele se contêm, em vez de nos perturbarem, nos sirvam de orientação.

E não apenas para nós mesmos, como para outros irmãos nossos que ainda labutam mais abaixo na escala evolutiva. A lei é amor e amor é ajuda ao semelhante, para que também ele suba conosco.

De que nos serviria conquistar elevado plano espiritual, para viver em solidão inútil ou na vazia contemplação de uma divindade estática? Vamos a grupos, vivemos em grupos, amamos em grupos e sofremos em grupos.

Enquanto uns de nós cá estamos na carne, a lutar e sofrer, outros lá estão no além, a esperar por nós, a sugerir-nos idéias que, no entanto, deixam ao nosso inteiro livre-arbítrio para seguirmos ou não.

E assim, vamos e voltamos, pelos séculos o fora, enriquecendo a nossa experiência humana e ajudando a fazer deste mundo em que habitamos um lugar melhor. Não nos interessa retardar-lhe a marcha evolutiva se para aqui teremos de voltar ainda e mais ainda. Por isso, por que hostilizar raças, religiões e povos?

Veja, por exemplo, o leitor essa história de nacionalismo. Claro que temos de dar tudo quanto podemos para melhorar e fazer evoluir o país em que nascemos, da mesma forma que lutamos pelo bem-estar da família que nos foi confiada, ou pela preservação dos bens materiais e espirituais que recebemos.

Mas o nacionalismo só adquire sua verdadeira dimensão, quando leva em conta os interesses alheios, isto é, quando não interfere com o dos demais povos nem os prejudica.

Aquele que leva a guerra e a destruição ao território chamado "inimigo", quase certamente vai renascer lá, para ajudar-lhe a reconstrução e sofrer as conseqüências das suas próprias arbitrariedades. Da mesma forma, o que exerce pressão econômica ou ideológica.

Não nos devemos esquecer, porém, de que se hoje somos brasileiros, por termos nascido nesta grande e generosa terra, em passadas encarnações andamos pela Europa ou pela Ásia ou África, trazendo às suas civilizações a nossa parcela de esforço construtivo e, às vezes, lamentavelmente nossa contribuição negativa.

Sabe-se lá se ajudamos a acender as fogueiras da Inquisição ou se pronunciamos anátema contra irmãos, só porque ousavam pensar diferente de nós?

A idéia do Espírito e seus corolários naturais, como a continuidade da existência, o intercâmbio espiritual, a reencarnação, serão particularmente desejáveis naqueles que exercem qualquer parcela de poder temporal.

O governante, o administrador, ou o líder profundamente imbuídos desses preceitos terão uma visão superior do mecanismo da História e jamais serão indiferentes ao sofrimento humano, nem permitirão que as forças cegas da ambição os arrastem e aos seus governados e liderados, para as trevas do negativismo.

O exercício do poder será, antes, uma função missionária, a qual não se disputar mas que se aceita com humildade e grandeza, diante das responsabilidades que envolve.

Esse dia talvez esteja longe, mas não custa sonhar com ele, pois que, segundo diz uma canção popular, se não sonharmos, como é que nossos sonhos se tornarão realidade?


João Marcus
Reformador – Março de 1964.