2013-10-14
Quem Matou o Mestre Nazareno?
Qual o nível de responsabilidade do povo judeu na Morte de Jesus.
Lembram-se da lenda do “Judeu Errante”? A versão mais conhecida nasceu por volta do século XVII.
Conta a história de um judeu que terá escarnecido de Jesus a caminho do Gólgota. O Mestre ter-lhe-à dito: “Hás-de caminhar até eu voltar”. E assim, ao longo dos séculos, surgiram relatos acerca do pobre judeu supliciado a carregar eternamente o peso da condenação.
A apologética clássica contra o judaísmo atinge o auge na época de ouro da patrística (séculos IV e V), desenvolvendo temas já esboçados pelos polemistas do II e III séculos.
Histórias como esta, motivada pelo sentimento pró-romano, contribuíram para elaborar uma imagem de um povo decadente e deicida, que ainda em 1965 era acusado de ter pressionado as autoridades da época a crucificarem Jesus.
Tem importância histórica o fato de o cristianismo ter começado como seita do judaísmo. Por isso, vamos fazer uma leitura cuidadosa de alguns passos do Novo Testamento e de dois ou três autores incluídos no grupo chamado dos “primeiros pais católicos” (180-250 d.C.), usando os instrumentos da crítica linguística e histórica.
Utilizaremos também o método dos exegetas: em vez de uma leitura “vertical”, livro a livro, vamos recortar cada um dos versículos dos quatro evangelhos e ordená-los lado a lado.
Com esta ordenação dos textos podemos fazer uma leitura “horizontal”, como se fossem quatro reportagens de diferentes jornalistas, comparando melhor todos os pormenores, as omissões, contradições, interpolações, etc.
Eis os fatos mais relevantes:
Jesus foi preso no Jardim das Oliveiras, já de noite. Algum tempo depois estava na presença de Anás. Foi remetido para o Sinédrio, sob a presidência de Caifás.
É extraditado para Pilatos. Por ser galileu e pertencer à jurisdição de Herodes, Pilatos envia-o ao Tetrarca da Galileia, Herodes Antipas. É restituído a Pilatos. Desenrola-se uma sucessão de acontecimentos que culmina com a crucificação.
1. A Prisão
Estando Jesus com os discípulos, apareceu “uma grande tropa de gente”, diz Mc 14,43. Em Mt 26,47 afirma-se que havia “anciãos do povo”; Em Lc 22,47.52 conta-se que no ato participaram uma “multidão” e também os “sacerdotes e capitães do Templo”.
E no quarto evangelho relata-se o mesmo episódio referindo a presença de “um bando de populares e oficiais dos principais sacerdotes e fariseus”, sendo a prisão executada por um comandante e os judeus, como se lê em Jo.18,12.
Os três primeiros evangelhos apenas se referem à presença de judeus no ato da prisão. Só João afirma ter havido participação conjunta de militares romanos e de judeus na detenção de Jesus.
A prisão, que foi o primeiro dos procedimentos que levariam à condenação de Jesus pelo governador romano fez-se com a presença de uma coorte romana e do seu comandante (Jo,18,12). Jesus ficou sob custódia das autoridades judias.
2. A Sessão Nocturna do Sinédrio
Depois da detenção, Jesus passou a noite na presença dos que o detiveram. Só depois de amanhecer foi conduzido ao Sinédrio. É o que está em Lc 22,63-66. João afirma que foi levado a casa de Anás, que era sogro de Caifás, o Sumo-Sacerdote daquele ano (18,13).
Só Mateus e Marcos concordam que Jesus tenha passado a noite diante do Conselho (Bouli), isto é, o Sinédrio. E aí decorre a suposta condenação de Jesus (Mc 14,64; Mt 26,65-66).
Admite-se que, segundo o costume judeu da época, o tribunal não podia reunir fora da dependência do Templo para julgar ilícitos penais. Nem o podia fazer à noite. Mas não havia preceito algum que proibisse uma reunião consultiva, um synhedrion, para um inquérito preliminar destinado a indiciar um réu perante o tribunal romano.
É o que se pode deduzir de Mc 15,: “logo pela manhã, tendo conselho os príncipes...”. O evangelista usa a expressão sumbouliom hetoimasantes. A palavra sumboulion, pouco frequente nos evangelhos, equivale a consilium, usada na Vulgata (consilium facientes). Encerra a ideia de “estudo de um plano de acção”.
Se o Sinédrio tivesse reunido como um tribunal, diz o jurista Haim Cohn, Marcos deveria ter usado as palavras krisis ou krima (julgamento), como em Lc 24,20 ou Mt 7,2. Contudo, em qualquer dos casos, não se pode concluir, dogmaticamente, se o sentido é apenas o de “citação para julgamento” ou “sentença dada pelo tribunal”.
Nesta sessão Jesus foi interrogado directamente pelo Sumo Sacerdote. Em Mc 14,61 temos a pergunta “És o Cristo, o filho do Deus bendito?”, seguida da resposta “Eu o sou”. E em Mt 26,63 temos um pergunta muito mais solene: “Eu te conjuro... que nos digas se és o Cristo, filho de Deus?” e uma resposta diferente: “Tu o disseste”. E acrescentou: “...vereis o filho do homem assentado à direita do Poder”.
As expressões “filho de Deus bendito” e “filho de Deus” não são hebreias. São interpolações que se fizeram posteriormente e datam duma época em que a origem divina de Jesus já havia sido introduzida no Credo.
Diz-se que o sumo sacerdote rasgou as vestes por causa da afirmação “...vereis o filho do homem assentado à direita do Poder”, que seria uma blasfémia ao contrariar o principio fundamental do monoteísmo judaico que não admite outro ser divino além de Deus.
O ato de rasgar das vestes decorre de uma norma da lei que se aplica a todos os membros do Sinédrio e não apenas ao Sumo Sacerdote. Por que não o fizerem todos os presentes?
E, além disso, tal ato devia resultar de uma profanação, como seria o pronunciar o único e sagrado nome de Deus, composto pelas letras YHWH (Javé). (Lev 24,15-16). Mas não se vislumbra nas palavras que os evangelistas registaram qualquer indício de blasfêmia.
Jesus referiu-se unicamente ao Poder (ou Poderoso), qualificativo que substitui o nome de Javé, que os judeus nunca pronunciam.
Não havendo injúria nem profanação, o comportamento do Sumo Sacerdote é desajustado e muito improvável, sabendo-se que os fariseus, que tinham a reputação de um legalismo rigoroso e de meticulosa exactidão formalística na observância de cada preceito legal, dificilmente agiriam contrariamente às prescrições em vigor.
O ato do Sumo Sacerdote nestas condições, não resulta do cumprimento formal de um preceito ritualístico, mas, quando muito, como sinal de aflição perante impossibilidade de ajudar Jesus a evitar o doloroso destino, no entender do jurista Haim Cohn.
Se houvesse crime de blasfémia, e se o direito de pronunciar uma condenação à pena capital não lhe tivesse sido retirado pelos romanos, o Sinédrio teria deliberado de acordo com as normas jurídicas contidas na Mishná, que prescrevem quatro maneira de a executar: apedrejamento; fogo, decapitação e estrangulamento. (Paul Winter, pág. 153).
Assim sendo, a palavra blasfémia não deve ser entendida no sentido técnico do Direito Judaico no contexto em que é usada, mas como ultraje (P.72, Paul Winter). O Sinédrio não proferiu nenhuma sentença, como se pode depreender da perícope de Lc 22,67-71, e nos At 13,27-38.
Os evangelistas, para os seus objectivos apologéticos e políticos, desviaram a culpa da morte de Jesus dos romanos para os judeus.
3. Pôncio Pilatos
É pouco provável que a extradição de Jesus para Pilatos ocorresse àquela hora da madrugada, amenos que ele já estivesse preparado para o receber. No Praetorium, Pilatos não lhe encontra “crime algum” e julga-se incompetente ratione materiae para o julgar.
Os sacerdotes insistem: “ele subleva o povo”. Astutamente habilidoso, foge novamente à sua responsabilidade e declara-se outra vez incompetente, mas agora ratione loci, atribuindo a Herodes a jurisdição criminal sobre Jesus.
Mas Herodes, ao cabo de frustrado interrogatório, devolve o réu a Pilatos, vestido com uma túnica branca, como os tribunos militares e os candidatos às eleições.
4. O Privilegium Paschale
Dizem os evangelistas que Pilatos lançou mão de outro recurso: pôr em liberdade um prisioneiro, usando o direito de indulto. Pediu ao povo que escolhesse entre Jesus e Barrabás.
Ao povo? Não, à populaça. O povo está para a populaça como o vinho para a zurrapa. O direito de graça remonta de fato aos romanos — e não aos judeus como se diz em Jo 18,39.
Pertencia inicialmente ao povo, reunido nos comícios, em cúrias, depois em tribos ou centúrias. Durante o Império, esse poder foi concentrado nas mãos do Imperador. Depois, foi transmitido aos Chefes de Estado.
E a maioria deles tem-se mostrado mais clemente do que o seriam as multidões, sempre prontas a correr para assistir, fascinadas, ao espectáculo do sofrimento e da morte — dos outros, naturalmente. (Paul Winter, pág. 187-203).
O relato dos evangelistas não encontram apoio nos dados históricos conhecidos. Não se conhece nenhum costume de conceder indulto a prisioneiro na véspera da Páscoa.
Havia, isso sim, uma norma, a provocatio ad populum, o “apelo ao povo”, determinando que “nenhum magistrado matasse ou açoitasse um cidadão romano, sem ter em conta o apelo ao povo”.
Mas este preceito não se aplicava às sentenças do Imperador — ou quando os réus não eram cidadãos romanos.
E também não se pode explicar por que razão, havendo a possibilidade de o povo escolher a libertação de qualquer prisioneiro (Mc 15,6; Mt 27,15; Lc 23,25; Jo 18,39), se apresentaram só dois prisioneiros, Jesus e Barrabás, sendo certo que havia mais outros dois, pelos menos, que seriam crucificados na mesma ocasião (Paul Winter, pág. 190-191, vd nota 6).
Sabe que Pilatos mandou chacinar multidões durante a construção do Aqueduto do Templo de Jerusalém. No catálogo dos vícios de Pilatos elaborado pelo Rei Agripa e que Filo nos refere constam os seguintes: obstinado, inflexível, tirânico e arrogante.
Com este carácter rude não parece susceptível de se ter deixado pressionar com a gritaria daquela multidão. Este relato pertence ao terreno da apologética.
O que parece evidente, é que a sentença foi proferida segundo a lei romana e foi executada por funcionários romanos.
Nenhum governador romano aceitaria que os judeus interferissem num julgamento por ele dirigido, que executassem uma sentença proferida por tribunal romano, nem sequer que participassem na execução.
Segundo os preceitos hebreus, a pena de morte podia ser aplicada por apedrejamento, queima, decapitação ou estrangulamento e nunca por crucificação (Paul Winter, ob. cit. pág.147-161.) que era um suplício usado pelos egípcios, cartagineses e persas. Na Grécia e em Roma era reservado aos escravos e aos grandes criminosos.
E o fato de Jesus não ter sido enterrado num dos dois cemitérios que se destinavam aos condenados pelo Sinédrio (foi entregue, como sabemos, a José de Arimateia, um vereador de Jerusalém), permite talvez concluir que a sentença foi proferida por um tribunal romano e executada por romanos.
Surge agora a interrogação: por que se fez cair a realidade no esquecimento e se transformaram relatos inexatos em história?
Por isso, podemos aceitar que esta “manifestação popular é historicamente possível, mas, mas a sua que influência sobre alguém, com o temperamento tirânico de Pilatos, pertence ao terreno da apologética”, (P. Winter, ob. cit. pág. 130).
5. A Convergência Ideológica
O mundo de influência helénica estava receptivo à mensagem de Paulo não só em virtude da tradição filosófica, em especial a estóica e a platónica, mas também pela inspiração órfico-pitagórica, mistérica e oriental que vinha da Antiguidade.
O impacto da “nova fé” nas diversas classes sociais do Império Romano ficou a dever-se à circunstância de ela garantir, paradoxalmente, a eliminação dos perigos do messianismo político judeu e, ao mesmo tempo, a conservação da esperança de uma libertação do mundo das misérias físicas.
O conteúdo reivindicativo do messianismo político judeo-cristão primitivo era de tal ordem que o cristianismo paulino só conseguiu vingar depois do ano 70, seguindo um processo de desjudaização e de desescatologização que culminaria na versão final da fé cristã depois da luta contra os gnósticos no segundo século (236).
Esta neutralização ideológica da vocação revolucionária do cristianismo antigo — que ainda se vê na Epístola de Santiago 5,1-6, testemunho da tradição reivindicativa do cristianismo original no início do segundo século (243), — fez-se inicialmente anulando o conceito antigo do verdadeiro Israel.
A inteligente estratégia de Paulo, reinterpretando o conceito tradicional de Israel em Rm 9,6, permitiu fazer a transição para a nova aliança evitando confrontos violentos.
Aliás, o conceito de Novo Testamento tem a sua origem em 2 Cor 3,6 ss, onde Paulo lembra a promessa vetero-testamentária de uma “nova aliança”. É o que vemos nas cartas aos Romanos, Gálatas e Filipenses, com uma “linguagem da justificação, originalmente cunhada para atacar as ideias judaicas sobre a salvação”.
A carta aos Hebreus, que é obra de um autor paulinista da segunda geração, pretende provar que o cristianismo não é a negação do judaísmo mas a superação do mesmo pelo sacrifício de Cristo. E para isso não hesita em desvalorizar os Salmos, os Profetas e o Pentateuco.
O evangelho de Marcos é o mais antigo, contrariamente ao que se pretende sugerir com a ordem canónica dos textos. Marcos escreveu para os gregos, por volta da época da guerra judaico-romano (cerca de 70 d.C.). É um autor de evidente tonalidade paulina. As palavras supostamente pronunciadas por Jesus em Mc 14,21-24 reflectem, muito possivelmente, a tradição de Paulo ou, pelo menos, a sua influência.
Trata-se de uma interpretação cristã-helenística de Jesus, em que se fundia a figura do soter greco-orientalizante com a figura do Messias judeu, evidenciando a preocupação de nos apresentar um Jesus sub specie historiae e não sub specie theologiae.
Marcos faz uma análise benévola do carácter de Pilatos. E no futuro, quanto mais o Estado romano perseguia os cristãos, mais generosa se tornava a descrição de Pilatos. Quanto se redigiu o Credo Apostólico, no primeiro ou segundo século, o nome de Pilatos já não era mais do que uma simples referência cronológica: “...padeceu sob Pôncio Pilatos”.
A primeira carta de Clemente de Roma aos Coríntios, escrita em 96 d.C., é um dos mais interessantes documentos — e talvez o primeiro dos escritos sub-apostólicos.
Permite ao estudioso verificar a gradual convergência da ideológica entre a Igreja e o Império Romano na doutrina da autoridade, quando se instalou o espírito de acomodação da mensagem cristã às realidades do mundo secular. O prestígio da Igreja entre os Bárbaros veio-lhe mais do seu carácter romano que do seu carácter cristão.
Sem pôr em causa a sinceridade das convicções individuais, do mesmo modo que a fidelidade à missão do cristianismo, o que resultou desta convergência, na Idade Média, é que os políticos viam a religião em termos de política, e os religiosos encaravam a política em termos de salvação. De uma convergência de interesses passou-se para uma convergência de naturezas.
A exortação mais evidente na primeira carta de Clemente aos Coríntios é para fazer o que for bom e agradável a Deus e aos nossos governantes. O que nela vemos é a sacralização dos poderes políticos, sociais e económicos, sendo a obediência, como virtude cristã, considerada em paralelo com a disciplina militar das legiões romanas.
Para finalizar, vamos ver o que nos diz outro autor, um dos Pais da Igreja: Tertuliano de Cartago. Formado em Direito, senhor de uma grande energia, foi um autor turbulento.
Gerador de despotismo e intolerância em épocas posteriores na sua Apologia, escrita em 197, define-se o carácter de lealdade ao Imperador e defensor inquestionável da paz romana transformando um discurso ad romanos imperatores na defesa da ordem ad christianos romanos.
Estava consumado o processo de convergência, iniciado cerca de dois séculos antes quando se desviou a culpa pela morte de Jesus do seu verdadeiro responsável: Pilatos.
6. Conclusão
É a natureza dos evangelhos, que são escritos literários e não biográficos, que torna praticamente impossível determinar a causa da prisão de Jesus e o esclarecer as circunstâncias com ela relacionadas.
De uma coisa temos, porém, a certeza: o cristianismo não admite que se possam castigar inocentes por culpas que não cometeram.
Mas, se por absurdo admitíssemos o princípio de o castigo e da responsabilidade colectivos serem transmissíveis aos descendentes, como na fábula do lobo e do cordeiro, então os responsáveis pela condenação de Jesus seriam os italianos.
Isto, claro, do ponto de vista histórico, que, liberto do conflito com a fé, mostra, diz H. Schlesinger, “como é historicamente inexacta, juridicamente infundada, moralmente lastimável e totalmente insustentável do ponto de vista cristão, a tese da responsabilidade do povo judeu pela morte de Jesus”.
Fraternidade Rosacruz
Max Heindel
http://www.imagick.org.br/pagmag/themas2/QuemMatouMestre.html