2012-06-04

CONHECER PARA AMAR E RESPEITAR







O Livro dos Espíritos

PRINCÍPIOS DA DOUTRINA ESPÍRITA


sobre a imortalidade da alma, a natureza dos Espíritos e suas relações com os homens, as leis morais, a vida presente, a vida futura e o porvir da Humanidade - segundo os ensinos dados por Espíritos superiores com o concurso de diversos médiuns - recebidos e coordenados


P O R


ALLAN KARDEC


I N T R O D U Ç Ã O


ao estudo da


DOUTRINA ESPÍRITA



I

Para se designarem coisas novas são precisos termos novos. Assim o exige a clareza da linguagem, para evitar a confusão inerente à variedade de sentidos das mesmas palavras.

Os vocábulos espiritual, espiritualista, espiritualismo têm acepção bem definida. Dar-lhes outra, para aplicá-los à doutrina dos Espíritos, fora multiplicar as causas já numerosas de anfibologia.

Com efeito, o espiritismo é o oposto do materialismo. Quem quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria, é espiritualista. Não se segue daí, porém, que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível.

Em vez das palavras espiritual, espiritualismo, empregamos, para indicar a crença a que Vimos de referir-nos, os termos espírita e espiritismo, cuja forma lembra a origem e o sentido radical e que, por isso mesmo, apresentam a vantagem de ser perfeitamente inteligíveis, deixando ao vocábulo espiritualismo a acepção que lhe é própria.

Diremos, pois, que a doutrina espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível.

Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas, ou, se quiserem, os espiritistas.

Como especialidade, o Livro dos Espíritos contém a doutrina espírita; como generalidade, prende-se à doutrina espiritualista, uma de cujas fases apresenta.

Essa a razão porque traz no cabeçalho do seu título as palavras: Filosofia espiritualista.


II


Há outra palavra acerca da qual importa igualmente que todos se entendam, por constituir um dos fechos de abóbada de toda doutrina moral e ser objeto de inúmeras controvérsias, à míngua de uma acepção bem determinada. É a palavra alma.


A divergência de opiniões sobre a natureza da alma provém da aplicação particular que cada um dá a esse termo.

Uma língua perfeita, em que cada ideia fosse expressa por um termo próprio, evitaria muitas discussões.

Segundo uns, a alma é o princípio da vida material orgânica. Não tem existência própria e se aniquila com a vida: é o materialismo puro.

Neste sentido e por comparação, diz-se de um instrumento rachado, que nenhum som mais emite: não tem alma.

De conformidade com essa opinião, a alma seria efeito e não causa.

Pensam outros que a alma é o princípio da inteligência, agente universal do qual cada ser absorve uma certa porção.

Segundo esses, não haveria em todo o Universo senão uma só alma a distribuir centelhas pelos diversos seres inteligentes durante a vida destes ,voltando cada centelha, mortos ou seres, à fonte comum, a se confundir com o todo,como os regatos e os rios voltam ao mar, donde saíram.

Essa opinião difere da precedente em que, nesta hipótese, não há em nós somente matéria, subsistindo alguma coisa após a morte.


Mas é quase como se nada subsistisse, porquanto, destituídos de individualidade, não mais teríamos consciência de nós mesmos.

Dentro desta opinião, a alma universal seria Deus, e cada ser um fragmento da divindade. Simples variante do panteísmo.


Segundo outros, finalmente, a alma é um ser moral, distinto, independente da matéria e que conserva sua individualidade após a morte.


Esta acepção é, sem contradita a mais geral, porque, debaixo de um nome ou de outro, a ideia desse ser que sobrevive ao corpo se encontra, no estado de crença instintiva, não derivada de ensino, entre todos os povos, qualquer que seja o grau de civilização de cada um.


Essa doutrina, segundo a qual a alma é causa e não efeito, é a dos espiritualistas. 

Sem discutir o mérito de tais opiniões e considerando apenas o lado linguístico da questão, diremos que estas três aplicações do termo alma correspondem a três ideias distintas, que demandariam, para serem expressas, três vocábulos diferentes.

Aquela palavra tem, pois, tríplice acepção e cada um, do seu ponto de vista, pode com razão defini-la como o faz.


O mal está em a língua dispor somente de uma palavra para exprimir três ideias.

A fim de evitar todo equívoco, seria necessário restringir-se a acepção do termo alma a uma daquelas ideias.

A escolha é indiferente; o que se faz mister é o entendimento entre todos reduzindo-se o problema a uma simples questão de convenção.

Julgamos mais lógico tomá-lo na sua acepção vulgar e por isso chamamos ALMA ao ser imaterial e individual que em nós reside e sobrevive ao corpo.

Mesmo quando esse ser não existisse, não passasse de produto da imaginação, ainda assim fora preciso um termo para designá-lo.


Na ausência de um vocábulo especial para tradução de cada uma das outras ideias a que corresponde a palavra alma, denominamos:


Princípio vital o princípio da vida material e orgânica, qualquer que seja a fonte donde promane, princípio esse comum a todos os seres vivos, desde as plantas até o homem.

Pois que pode haver vida com exclusão da faculdade de pensar, o princípio vital é uma propriedade da matéria, um efeito que se produz achando-se a matéria em dadas circunstâncias.

Segundo outros, e esta é a ideia mais comum, ele reside em um fluido especial, universalmente espalhado e do qual cada ser absorve e assimila uma parcela durante a vida, tal como os corpos inertes absorvem a luz.


Esse seria então o fluido vital que, na opinião de alguns, em nada difere do fluido elétrico animalizado, ao qual também se dão os nomes de fluido magnético, fluido nervoso, etc. 

Seja como for, um fato há que ninguém ousaria contestar, pois que resulta da observação: é que os seres orgânicos têm em si uma forma íntima que determina o fenômeno da vida, enquanto essa força existe; que a vida material é comum a todos os seres orgânicos e independe da inteligência e do pensamento; que a inteligência e o pensamento são faculdades próprias de certas espécies orgânicas; finalmente, que entre as espécies orgânicas dotadas de inteligência e de pensamento há uma dotada também de um senso moral especial, que lhe dá incontestável superioridade sobre as outras: a espécie humana.


Concebe-se que, com uma acepção múltipla, o termo alma não exclui o materialismo, nem o panteísmo.


O próprio espiritualismo pode entender a alma de acordo com uma ou outra das duas primeiras definições, sem prejuízo do Ser imaterial distinto, a que então dará um nome qualquer.

Assim, aquela palavra não representa uma opinião: é um Proteu, que cada um ajeita a seu bel-prazer. Daí tantas disputas intermináveis.

Evitar-se-ia igualmente a confusão, embora usando-se do termo alma nos três casos, desde que se lhe acrescentasse um qualificativo especificando o ponto de vista em que se está colocado, ou a aplicação que se faz da palavra.


Esta teria, então, um caráter genérico, designando, ao mesmo tempo, o princípio da vida material, o da inteligência e o do senso moral, que se distinguiriam mediante um atributo, como os gases, por exemplo, que se distinguem aditando-se ao termo genérico as palavras hidrogênio, oxigênio ou azoto.

Poderse-ia ,assim dizer, e talvez fosse o melhor, a alma vital - indicando o princípio da Vida material; a alma intelectual - o princípio da inteligência, e a alma espírita - o da Nossa individualidade após a morte.


Como se vê, tudo isto não passa de uma questão de palavras, mas questão muito importante quando se trata de nos fazermos entendidos.

De conformidade com essa maneira de falar, a alma vital seria comum a todos os seres orgânicos: plantas, animais e homens; a alma intelectual pertenceria aos animais e aos homens; e a alma espírita somente ao homem.

Julgamos dever insistir nestas explicações pela razão de que a doutrina espírita repousa naturalmente sobre a existência, em nós, de um ser independente da matéria e que que sobrevive ao corpo.


A palavra alma, tendo que aparecer com frequência no curso desta obra, cumpria fixássemos bem o sentido que lhe atribuímos, a fim de evitarmos qualquer engano.



Passemos agora ao objeto principal desta instrução preliminar.

III


Como tudo que constitui novidade, a doutrina espírita conta com adeptos e contraditores.


Vamos tentar responder a algumas das objeções destes últimos, examinando o valor dos motivos em que se apoiam, sem alimentarmos, todavia, a pretensão de convencer a todos, pois muitos há que creem ter sido a luz feita exclusivamente para eles.

Dirigimo-nos aos de boa-fé, aos que não trazem ideias preconcebidas ou decididamente firmadas contra tudo e todos, aos que sinceramente desejam instruir-se e lhes demonstraremos que a maior parte das objeções opostas à doutrina promanam de incompleta observação dos fatos e de juízo leviano e precipitadamente formado.


Lembremos, antes de tudo, em poucas palavras, a série progressiva dos fenômenos que deram origem a esta doutrina.


O primeiro fato observado foi o da movimentação de objetos diversos. Designaram -no vulgarmente pelo nome de mesas girantes ou dança das mesas.

Este fenômeno, que parece ter sido notado primeiramente na América, ou melhor, que se repetiu nesse país, porquanto a História prova que ele remonta à mais alta antiguidade, se produziu rodeado de circunstâncias estranhas, tais como ruídos insólitos, pancadas sem nenhuma causa ostensiva.


Em seguida, propagou-se rapidamente pela Europa e pelas partes do mundo.

A princípio quase que só encontrou incredulidade, porém, ao cabo de pouco tempo, a multiplicidade das experiências não mais permitiu lhe pusessem em dúvida a realidade.


Se tal fenômeno se houvesse limitado ao movimento de objetos materiais, poderia explicar-se por uma causa puramente física.


Estamos longe de conhecer todos os agentes agentes ocultos da Natureza, ou todas as propriedades dos que conhecemos: a eletricidade multiplica diariamente os recursos que proporciona ao homem e parece destinada a iluminar a Ciência com uma nova luz.

Nada de impossível haveria, portanto, em que a eletricidade modificada por certas circunstâncias, ou qualquer outro agente desconhecido, fosse a causa dos movimentos observados.
O fato de que a reunião de muitas pessoas aumenta a potencialidade da ação parecia vir em apoio dessa teoria.


Visto poder-se considerar o conjunto dos assistentes como uma pilha múltipla, com o seu potencial na razão direta do número dos elementos.

O movimento circular nada apresentava de extraordinário: está na Natureza.



Todos os astros se movem em curvas elipsoides; poderíamos, pois, ter ali, em ponto menor, um reflexo do movimento geral do Universo, ou, melhor, uma causa, até então desconhecida, produzindo acidentalmente, com pequenos objetos em dadas condições, uma corrente análoga à que impele os mundos.

Mas, o movimento nem sempre era circular; muitas vezes era brusco e desordenado, sendo o objeto violentamente sacudido, derrubado, levado numa direção qualquer e, contrariamente a todas as leis da estática, levantando e mantido em suspensão.



Ainda aqui nada havia que se não pudesse explicar pela ação de um agente físico invisível, não vemos a eletricidade deitar por terra edifícios, desarraigar árvores, atirar longe os mais pesados corpos, atraí-los ou repeli-los?

Os ruídos insólitos, as pancadas, ainda que não fossem um dos efeitos ordinários da dilatação da madeira, ou de qualquer outra causa acidental, podiam muito bem ser produzidos pela acumulação de um fluido oculto: a eletricidade não produz formidáveis ruídos?


Até aí, como se vê, tudo pode caber no domínio dos fatos puramente físicos e fisiológicos.


Sem sair desse âmbito de ideias, já ali havia, no entanto, matéria para estudos sérios e dignos de prender a atenção dos sábios. Por que assim não aconteceu?

É penoso dizê-lo, mas o fato deriva de causas que provam, entre mil outros semelhantes, a leviandade do espírito humano.

A vulgaridade do objeto principal que serviu de base às primeiras experiências não foi alheia à indiferença dos sábios.


Que influência não tem tido muitas vezes uma palavra sobre as coisas mais graves!

Sem atenderem a que o movimento podia ser impresso a um objeto qualquer, a idéia das mesas prevaleceu, sem dúvida, por ser o objeto mais cômodo e porque, à roda de uma mesa, muito mais naturalmente do que em torno de qualquer outro móvel, se sentam diversas pessoas.


Ora, os homens superiores são com frequência tão pueris que não há como ter por impossível que certos espíritos de escol hajam considerado deprimente ocuparem-se com o que se convencionara chamar a dança das mesas.

É mesmo provável que se o fenômeno observado por Galvâni o fora por homens vulgares e ficasse caracterizado por um nome burlesco, ainda estaria relegado a fazer companhia à varinha mágica.


Qual, com efeito, o sábio que não houvera julgado uma indignidade ocupar-se com a dança das rãs?

Alguns, entretanto, muito modestos para convirem em que bem poderia dar-se não lhes ter ainda a Natureza dito a última palavra, quiseram ver, para tranquilidade de suas consciências.


Mas aconteceu que o fenômeno nem sempre lhes correspondeu à expectativa e, do fato de não se haver produzido constantemente à vontade deles e segundo a maneira de se comportarem na experimentação, concluíram pela negativa.


Mau grado, porém, ao que decretaram, as mesas - pois que há mesas - continuam a girar e podemos dizer com Galileu: todavia, elas se movem!

Acrescentaremos que os fatos se multiplicaram de tal modo que desfrutam hoje do direito de cidade, não mais se cogitando senão de lhes achar uma explicação racional.


Contra a realidade do fenômeno, poder-se-ia induzir alguma coisa da circunstância de ele não se produzir de modo sempre idêntico, conformemente à vontade e às exigências do observador?


Os fenômenos de eletricidade e de química não estão subordinados a certas condições? Será lícito negá-los, porque não se produzem fora dessas condições?


Que há, pois, de surpreendente em que o fenômeno do movimento dos objetos pelo fluido humano também se ache sujeito a determinadas condições e deixe de se produzir quando o observador, colocando-se no seu ponto de vista, pretende fazê-lo seguir a marcha que caprichosamente lhe imponha, ou queira sujeitá-lo às leis dos fenômenos conhecidos, sem considerar que para fatos novos pode e deve haver novas leis?

Ora, para se conhecerem essas leis, preciso é que se estudem as circunstâncias em que os fatos se produzem e esse estudo não pode deixar de ser fruto de observação perseverante, atenta e às vezes muito longa.


Objetam, porém, algumas pessoas: há frequentemente fraudes manifestas.


Perguntar-lhes-emos, em primeiro lugar, se estão bem certas de que haja fraudes e se não tomaram por fraude efeitos que não podiam explicar, mas ou menos como o camponês que tomava por destro escamoteador um sábio professor de Física a fazer experiências.


Admitindo-se mesmo que tal coisa tenha podido verificar-se algumas vezes, constituiria isso razão para negar-se o fato? Dever-se-ia negar a Física, porque há prestidigitadores que se exornam com o título de físicos?


Cumpre, ao demais, se leve em conta o caráter das pessoas e o interesse que possam ter em iludir. Seria tudo, então, mero gracejo?

Admite-se que uma pessoa se divirta por algum tempo, mas um gracejo prolongado indefinidamente se tornaria tão fastidioso para o mistificador, como para o mistificado.

Acresce que, numa mistificação que se propaga de um extremo a outro do mundo e por entre as mais austeras ,veneráveis e esclarecidas personalidades, qualquer coisa há, com certeza, tão extraordinária, pelo menos, quanto o próprio fenômeno.



CONTINUA NA PRÓXIMA POSTAGEM...