2012-07-26
O Canto do Satori
SHODOKA
O Canto do Satori imediato
No budismo, a maior parte dos sutras foram escritos pelos discípulos de Buda, e depois comentados e traduzidos ao longo dos anos e dos séculos.
Segundo seus autores, esses comentários tomaram um aspecto religioso ou filosófico, histórico ou literário. Mas o “espírito do Buda”, a natureza de Buda foram transmitidos, além dos sutras, por seu discípulo Mahakyaçyapa, o único que percebeu a total verdade do seu ensinamento. Um dia, em Benares, o Buda, à guisa de sermão, tomou uma flor entre os dedos e se pós a girá-la.
Mahakyaçyapa compreendeu e sorriu. Com a flor, Buda lhe deu a essência do seu ensinamento: essa transmissão “de minha alma para a tua alma” se estendeu, através da sucessão de patriarcas, até a China, por intermédio de Bodhidhanna, e ao Japão, pelo Mestre Dogen e seus sucessores.
Assim sendo, podemos abordar o budismo de duas maneiras: pelos livros e textos e pela transmissão direta e viva de um mestre. A tradição pura do Zen situa-se além dos livros e dos sutras. Sem mestre, o Zen não existe. Nesse sentido, Bodhidharma falou:
“Transmissão particular além dos escritos.
Não se basear nos textos, Revelar diretamente a cada homem seu espírito original.”
Bodhidharma não falava chinês e seu primeiro discípulo, Eka, não conhecia a língua indiana. Eles se compreenderam além das palavras, através dos gestos e do espírito. Assim nasceu o ensino do Ch’an, que no Japão se tomou o Zen e transmitiu-se o Espírito do Buda.
Algumas pessoas me perguntam por que eu não aprendo o francês; eu desejaria poder explicar tudo a vocês com numerosos detalhes e de modo muito mais abrangente. Eu me dirigiria ao intelecto e ao cérebro de vocês, e não à intuição, anulando assim a verdade essencial.
Cada mestre ensina de um modo particular e com sua própria personalidade. O ensino do Zen desenvolveu-se na China e no Japão através de poemas curtos, os koans, ou de expressões particulares. Assim, a forma poética chamada haicai, no Japão, foi muito influenciada pelo Zen.
“O ensino de um mestre zen deve ser como o discurso de um surdo’ mudo.” A língua do Zen não é nem o japonês, nem o inglês, nem o francês, mas a dos gestos, das expressões dos olhos, das mãos, dos pés, do como inteiro.
O verdadeiro Zen se transmite “I shin den shin”, da minha alma para a tua alma. Numerosas obras foram escritas sobre o Zen, mas elas só contêm uma pequena parcela de verdade.
Elas nos deixam como o cego que acredita saber o que é uma cerejeira depois de ter o seu tronco entre os braços e depois de ter sentido a dureza da sua casca.
O Shodoka - “Canto do Satori Imediato” - é um dos quatro textos essenciais do Zen. Os outros são o Shin jin mei, escrito anteriormente pelo Mestre Sosan, o Sandokai do Mestre Sekito, e o Hokyo zunmai, do Mestre Tosan, que lhe são posteriores. Se quiser compreender o Zen através dos livros, é preciso antes conhecer essas quatro obras.
Num livro anterior, O verdadeiro Zen, comentei alguns poemas do Shodoka. Mas seria preciso revê-los e depois comentar o conjunto da obra. Espero que esta tradução e os novos comentários transmitam, o mais exatamente possível, o espírito, a forma e o sentido deste poema.
O Shodoka comporta 2.000 kanjis, ou ideogramas chineses, que se agrupam em 267 versos de 7 kanjis cada um, aproximadamente. O texto segue aqui a divisão em 78 poemas, adotada pelo meu Mestre, Kodo Sawaki.
Sho significa “experimentado, evidente, certificado” e, às vezes, “satori”. Do designa “o caminho”, o verdadeiro espírito, o verdadeiro ego, a vida eterna, universal.
Quando Deus não pode ser reconhecido, ele aparece. Onde ele não pode ser visto, ele existe. O verdadeiro Caminho, o da verdade cósmica, situa-se num tempo irreal e num lugar invisível.
A maior parte dos homens não pode tocá-lo, nem vê-lo, mas seu lugar e seu tempo estão muito próximos de nós, estão “aqui e agora”. O Caminho é aqui e agora. Este é o sentido do Shodoka.
A verdade autêntica reside no sistema cósmico e nos fenômenos do real. Mas esses fenômenos reais devem ser criados a partir da fonte original e pura de Ku, o vazio.
A sua realização gera uma vida maravilhosa, uma morte maravilhosa. O Mestre Yoka descreve como despertar para essa vida e para essa morte, como “decidir” nossa vida cotidiana, corno “cortar” nosso espírito e nosso ego.
Yoka Daishi morreu há mais de mil anos, em 713, mas seu Shodaka, ainda vivo em nossa época, está cheio de um frescor que não existe na maioria dos sutras e dos poemas antigos.
O poema começa pela palavra Kimi (querido amigo) e não por zô (tu), como os outros textos, o que lhe dá um tom mais vivo e o toma mais próximo do leitor.
Em nossa época, os homens vivem pela metade. Em todos os campos eles estão “mornos”, incompletos, semivivos e semimortos. Ninguém mais tem fé na verdade, ou em si, mesmo os professores, os políticos ou os cientistas. A especialização tornou-os homens incompletos.
O Shodoka está destinado a cortar todas as dúvidas que habitam os homens, a “cortar” seu espírito e a encontrar a verdade em Deus ou em Buda; através dele, o homem pode despertar para uma vida autêntica.
Ka significa “canto”.
O Shodoka não é propriamente um poema. mas um canto, forma mais popular que a poesia simplesmente lida. O ritmo da recitação permite extrair o sentido profundo, muito além das palavras.
Esse ensinamento tem mais impacto que os textos complicados e didáticos sobre o budismo. Suas palavras são simples, mas exatas e precisas, coloridas e vivas.
Yoka Daishi
Tradução e comentários de Taisen Deshimaru
Editora Pensamento