2012-09-09

O QUE É DEUS?







Textos para Reflexão: O que é Deus?


Parte da série "Reflexões sobre a espiritualidade e a ciência", onde o ocultista Marcelo Del Debbio e o cético Kentaro Mori respondem a uma mesma pergunta (a cada post). Para conhecer mais sobre esses dois distintos participantes,
não deixe de ler sobre a premissa da série.


PARTICIPANTES:


>> Marcelo Del Debbio é arquiteto com especializações em semiótica, história da arte e urbanismo, e também um grande pesquisador de mitologia, ordens iniciáticas, astrologia e ocultismo. É editor chefe da Daemon Editora, responsável pelo blog Teoria da Conspiração, membro fundador do Project Mayhem, colunista do blog Sedentário & Hiperativo, dentre outras atividades


>> Kentaro Mori é analista de sistemas e um grande defensor do pensamento cético na web. É responsável pelo projeto Ceticismo Aberto, além de autor do blog 100nexos, um dos administradores da comunidade ScienceBlogs Brasil, colunista do blog Sedentário & Hiperativo, consultor do quadro Detetive Virtual, do Fantástico da Rede Globo, dentre outras atividades.


[RAFAEL] - Tanto na ciência quanto na religião, a humanidade têm se deparado com conceitos que lhes são transcendentes. Tantas foram às interpretações dos deuses ou das leis naturais, que às vezes parece que cada indivíduo tem sua própria visão deles. O que seria então, para você, o conceito de Deus ou de Cosmos?


[MORI] - O Cosmos é tudo aquilo que há, para emprestar a definição de um grande sujeito que falou sobre ele na TV. Etimologicamente o conceito ainda carrega a ideia de ordem e harmonia, desde a Grécia Antiga. Acreditar no Cosmos é assim simplesmente aceitar sua definição englobando todo o Universo; e comprovar ordem e harmonia no mundo talvez só requeira uma olhada no céu noturno com estrelas nascendo e se pondo em uma regularidade que transcende a Humanidade, percebida mesmo por nossos ancestrais mais distantes.

Seria tentador e muito politicamente correto igualar este conceito de Cosmos a Deus, de fato o “Deus de Spinoza” a que Albert Einstein se referiu é muito próximo da ideia de Cosmos de que falamos aqui. O que é um pouco menos conhecido é que o Deus de Spinoza não é apenas mais um tipo de Deus, mas um tipo de Deus definido para rejeitar outros deuses, em particular o tipo de Deus mais popular pelo mundo, o Deus providencial das escrituras. Quando Einstein diz acreditar no Deus de Spinoza, ele não está se incluindo na turma das pessoas que acreditam em Deus, ele está se excluindo.

É preciso questionar conceitos tão abrangentes e flexíveis que acabam perdendo todo seu valor. Uma das primeiras coisas que o ser humano fez no Jardim do Éden, de acordo com a fábula, foi dar nomes aos animais, para diferenciá-los. Carl Sagan, em “Os Dragões do Éden”, interpretou esta fábula como refletindo a importância da linguagem, e é irônico que no pós-modernismo exista essa ideia de que todo significado seja relativo, promovendo um ecumenismo que é em verdade aquilo que George Orwell advertiu com o horror da Novilíngua.

A transcendência que a ciência natural busca, por exemplo, não é a mesma transcendência buscada pela religião – são em verdade conceitos mutuamente exclusivos. A transcendência religiosa está por definição além daquela perscrutável pela ciência natural, que sempre estará limitada por aquilo que possa ser comprovado e observado no mundo que nos cerca. Na religião, se acredita em algo porque é absurdo, do contrário se estará apenas constatando algo. São palavras iguais, mas com usos e definições muito diferentes. Forçar o entendimento de conceitos mesmo contraditórios como parte de uma única ideia é mesmo parte do Duplipensar de Orwell, o ponto cego onde o raciocínio pode ser extinto.

Um ecumenismo politicamente correto onde “todos acreditam em deus de sua própria forma” é um uso político e totalitário da linguagem. Não, quem acredita no deus das escrituras não pode, ao mesmo tempo, considerar que aquele que acredita em Shiva também acredita em deus, ou que aquele físico que diz acreditar no deus de Spinoza também seja teísta. São crenças explicitamente contraditórias.

A verdadeira tolerância é reconhecer estas contradições e respeitar o direito que cada um tem a suas próprias crenças – e descrenças. O Cosmos em que acredito, a ordem e harmonia no mundo que vejo e comprovo, não é deus. É um conceito que se afirma tanto em si mesmo, quanto pela exclusão de outras ideias, que conheço, mas não compartilho com outras pessoas quem, todavia, respeito.

Eu sou ateu.


[DEL DEBBIO] - Para os Hermetistas e Cabalistas, Deus é o Universo. A soma de tudo.

Nada de velhinhos barbudos preocupados com o que você faz com a sua genitália; nada de seres relampejantes ou divindades com múltiplos braços, mas a soma de tudo o que pode ser compreendido dentro deste Universo: galáxias, sóis, planetas, continentes, países, estados, cidades, comunidades, casas e, finalmente, cada indivíduo, que passa a ser o deus criador de suas próprias idéias e de todas as ações conscientes, em um fractal infinito de possibilidades.

Para os hermetistas, “Deus” se divide primordialmente em Sabedoria e Entendimento: duas partes que interagem entre si.

Os antigos chineses chamavam estas partes de Yin e Yang; os gregos de Ordem e Caos; os nórdicos de Gelo e Fogo; os católicos de Anjos e Demônios e os cientistas chamam de Física/Matemática e Evolução. Os Cabalistas chamam estas Esferas de Hochma e Binah.

Hochma (a Evolução, Caos, Yang, Fogo, mutação, o Esperma) é compreendida pelos cabalistas como “Sabedoria” porque está associada à idéia de que a sabedoria vem de descobrir algo novo que não estava lá antes.

Como Deus se manifesta de maneira fractalizada, este conceito pode ser aplicado desde as regras de evolução de Darwin até os memeplexes de Dawkins; pode ser aplicado desde as mutações genéticas que desenvolveram toda a miríade de seres vivos diferentes no planeta (uma mutação faz com que algo novo surja dentro da repetição genética) até as variações físicas responsáveis pela gama de estrelas diferentes no universo e a maneira como as formas das galáxias evoluem dependendo da região do cosmos onde estejam. E pode ser aplicada também a uma criança de dois anos que aprende pela primeira vez uma palavra nova.

Binah (As regras, Ordem, Yin, Gelo, o Imutável, o Óvulo) é compreendida pelos cabalistas como “Entendimento” porque está associada à idéia de que somente entendemos o mundo através do processo científico, de escolha, teste e repetição controlados. Binah é a matemática, a física teórica, as regras rígidas e imutáveis que guiam nosso universo e nos permitem “prever” acontecimentos pela certeza de sua repetição (se nada for alterado). Binah é a escolha de UM universo para trabalharmos. Em outros universos, as regras são outras (em outras cabeças, outras idéias)…

A título de curiosidade, a intersecção simbólica entre estas duas Esferas, Hochma e Binah, é feita através da letra “Daleth” que quer dizer “Porta” (a porta de entrada de um universo maior/Hochma para um universo menor/Binah – do deserto para sua cabana, por exemplo) e representa a própria natureza (o Arcano da Imperatriz no tarot). A partir daí, quando Olhamos para cima, temos Kether (“Deus”), quando olhamos para baixo, temos Daath (“Conhecimento”).

Desta maneira, o conceito de “Deus” para os hermetistas depende da escala que você quer trabalhar. O Universo é Deus, mas eu também sou Deus, e o ato de escolher e preparar o meu jantar hoje de noite é Deus; e isso independe de qualquer crença ou descrença.

O problema começa quando as pessoas tentam compreender o que é esta grandiosidade de sensações e experiências através do artifício da antropomorfização (dar forma humana a fenômenos naturais) para tentar explicar o que não pode ser mensurável.

A partir deste momento, a definição e imagem de “Deus” varia de acordo com fatores culturais, temporais, artísticos e espaciais: africanos entendiam esta dicotomia Ordem/Caos como Xangô/Iansã e associavam isto à Montanha (imutável) e à tempestade (caótica), Babilônicos tinham Ea (céu azul e limpo) e Lillith (a tempestade), Egípcios tinham Maat (A Justiça) e Ptah (O escriba de todas as possibilidades), Gregos tinham Ouranos e Nix, Nórdicos tinham Ymir (gigante do gelo) e Surtur (gigante do fogo), católicos têm Adão (deu nome para todas as coisas vivas) e Eva (comeu o fruto da árvore proibida e fez com que fossem expulsos do Paraíso), hindus tem Vishnu e Shiva, os thelemitas têm Therion e Babalon… Dezenas de mitos diferentes; mesmas idéias.

O GRANDE problema acontece quando pessoas resolvem transformar Símbolos em Deuses Literais (que, sendo literais, permitem “crença” ou “descrença”) e os manipulam para impor e manter seus poderes econômicos e políticos sobre a população… Mas isto é uma outra história.


Fonte: Textos para Reflexão
http://textosparareflexao.blogspot.com/2011/11/o-que-e-deus.html
Autor: Kentaro Mori, Marcelo Del Debbio e Rafael Arrais
Editor: Eduardo Patriota Gusmão Maria De Fatima Soare