Médiuns
Eles falam com espíritos, prevêem o futuro, resolvem mistérios e curam doenças. Ou pelo menos acreditam fazer tudo isso
“Não me conte nada sobre o caso.” Foi assim que Noreen Reiner recebeu o investigador Joe Uribe em sua casa, na Flórida, em 1993. O caso em questão era o assassinato do auditor fiscal Walter Sullivan, 4 anos antes. Noreen, uma médium investigativa, pegou o cinto e o relógio que a vítima usava quando morreu e fechou os olhos. De repente, começou a convulsionar, em uma espécie de transe, e falou: “Estão batendo em mim, estou muito machucado, acho que atiraram na minha nuca.” Quando voltou a si, ela sabia descrever com detalhes o rosto do assassino, o de sua mulher, o local da morte e o esconderijo da arma do crime. “Nunca acreditei nesse tipo de coisa”, diz o investigador Joe Uribe. “Mas resolvi ir atrás. E descobri que ela tinha acertado até o último detalhe, inclusive a cor da casa do assassino.” O culpado, Eugene Moore, confessou o crime e só não acabou atrás das grades porque foi morto enquanto tentava fugir da polícia.
Nem todos os médiuns são como a americana Noreen Reiner. Há os que psicografam mensagens que viriam de espíritos, como o brasileiro Chico Xavier (1910-2002), os que pintam quadros inspirados por uma força que não conhecem e ainda aqueles que acreditam prever o futuro. “Médium”, que em latim significa “aquele que está no meio”, é a palavra usada pelo espiritismo para designar pessoas que seriam um elo entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Mas a figura ultrapassa a fronteira dessareligião.
Acredita-se que os médiuns façam parte da nossa cultura há pelo menos 100 mil anos, quando os homens de Neandertal começaram a enterrar seus mortos e, um pouco depois, quando os Homo sapiens inauguraram a noção de consciência de si mesmo, tornando-se capazes de se colocar um no lugar do outro. “Quando surge a capacidade de imaginação e abstração, começam também a se criar mundos que não existem no plano visível”, diz Silas Guerriero, professor de ciências da religião da PUC de São Paulo. Como o mundo não era fácil para o homem pré-histórico, quem tinha alguma sensibilidade especial acabava virando um líder que ajudava na hora de enfrentar grandes períodos de chuva ou de seca, curar doenças ou arranjar comida. Assim surgiram os xamãs, profissionais dedicados a conversar com o lado de lá para resolver os problemas de cá – por meio de sacrifícios ou orações. “A necromancia, a comunicação com os mortos, é um dos hábitos mais antigos que existem”, afirma Antonio Flávio Pierucci, professor de sociologia da religião da USP.
Entre os gregos, os oráculos faziam previsões sagradas. Os pajés guaranis conversavam com deuses, assim como os feiticeiros do candomblé ou os líderes bíblicos. É o caso de Moisés, que está na raiz do cristianismo, do islamismo e do judaísmo. A Bíblia conta que, ao subir no monte Sinai, Moisés falou diretamente com Deus e recebeu dele os 10 Mandamentos. Para os sociólogos da religião, o fenômeno foi o que chamamos de mediunidade.
Hoje, a vida pode estar um pouco mais fácil, mas os médiuns seguem fascinando e tentando ajudar quem enfrenta problemas sem saída. Estão em séries de TV, novelas e livros – segundo a Federação Espírita Brasileira, 38,6 milhões de livros espíritas foram vendidos nos últimos anos. Quando uma história de mediunidade aparece, vem sempre cercada de enigmas. Eles conseguem mesmo fazer o que dizem? Se conseguem, como explicar essa dádiva? A seguir, veja como a ciência tenta encontrar respostas, começando pelo modo como pessoas comuns se descobrem médiuns.
Cérebros em êxtase
Cérebros em êxtase
Os cientistas acreditam que o cérebro explica a mediunidade. mas não sabem dizer como.
De repente, coisas estranhas ocorrem. A pessoa vê vultos inexplicáveis, ouve vozes de gente que não aparece ou faz previsões que, de tão acertadas, não parecem ser apenas coincidência. “Na primeira vez que aconteceu, fiquei com tanto medo que passei anos sem contar para ninguém”, diz Claudia Rosa (ao lado), que desde os 12 anos vive experiências de mediunidade. Depois dos momentos de susto, chega a hora de deixar de negar o fenômeno e tentar conviver com ele. Os brasileiros que acreditam ter dons mediúnicos geralmente procuram centros espíritas – há 14 mil deles no país – e acabam conhecendo gente com histórias parecidas. “Lendo livros e participando de treinamentos, o médium consegue desenvolver sua habilidade”, diz Marta Antunes, diretora da Federação Espírita Brasileira. “Mas, quando a mediunidade é exuberante, você não pode evitá-la.” As imagens de espíritos ou a inspiração para escrever uma carta costumam aparecer do nada, como um déjà vu, na hora em que a pessoa menos espera. É como dizia o médium Chico Xavier: “O telefone toca sempre de lá para cá”.
Na tentativa de ligar daqui para lá, muitas reli giões do planeta criam rituais e provocam um momento de êxtase: o transe. Para os médiuns, o transe é o ponto alto de sua habilidade, quando conseguem incorporar um espírito. Para os psiquiatras, é um estado alterado de consciência, assim como a hipnose, que se atinge após um longo processo de concentração. Rituais com danças frenéticas, mantras, estímulos luminosos, jejum prolongado e até plantas alucinógenas fariam o participante sair de si. “O indivíduo entra em um estado de consciência paralelo ao comum e se comporta da maneira adequada àquele contexto”, diz Paulo Dalgalarrondo, professor de psicopatologia na Unicamp. Símbolos e palavras específicas formam um mundo diferente do corriqueiro, que a pessoa passa a entender quando entra em transe. “O ritual pode parecer caótico, mas na verdade tem regras e símbolos próprios”, diz José Francisco Bairrão, filósofo e psicólogo social da Unicamp especializado em estudos afro-brasileiros.
Uma boa forma de desvendar a mediunidade é entender como rituais levam ao transe e como o transe resulta nos relatos de contato com os espíritos. Por isso, os cientistas tentam estudar o que acontece no cérebro durante esse momento único. A busca tem duas frentes. Numa delas há espíritas que tentam explicar e comprovar cientificamente a mediunidade. É o caso do psiquiatra Sérgio Felipe Oliveira, professor de medicina e espiritualidade da USP e membro da Associação Médico-Espírita de São Paulo. Segundo ele, a glândula pineal é a responsável pela interatividade com o mundo dos espíritos. Do tamanho de uma ervilha, a pineal fica no centro do cérebro e produz a melatonina, hormônio que regula o sono. “É um órgão sensorial capaz de converter ondas eletromagnéticas em estímulos neuroquímicos”, diz. Oliveira acredita que as pessoas que dizem sofrer possessões têm na pineal uma quantidade maior de cristais de apatita, um mineral parecido com o esmalte dentário. Quanto mais cristais, maior seria a sensibilidade espiritual.
Na outra frente, estão neuropsicólogos que usam exames de ressonância magnética e tomografias para tentar entender que mecanismos o cérebro aciona durante os rituais religiosos. O neurocientista Mario Beauregard, da Universidade de Montreal, no Canadá, estudou o cérebro de 15 freiras carmelitas enquanto elas rezavam. Achou uma dezena de pontos ativados, especialmente nas áreas relacionadas à emoção, orientação corporal e consciência de si próprio. Já o radiologista Andrew Newberg, da Universidade da Pensilvânia, nos EUA, mapeou a ativação cerebral de monges budistas. Analisando tomografias dos religiosos durante a meditação, Newberg notou que a área relacionada à orientação corporal é quase toda desativada, o que pode justificar a sensação relatada de desligamento do corpo. Ele também estudou freiras franciscanas durante longas preces. Descobriu que o fluxo sanguíneo do lóbulo parietal esquerdo, parte responsável pela orientação, caía bruscamente. Para Newberg, as irmãs experimentavam a sensação de união com Deus porque o cérebro delas deixava de fazer a separação do próprio corpo com o mundo.
Mas nenhuma das duas frentes de pesquisa tem explicações definitivas para os efeitos do transe. Por isso, as origens fisiológicas da mediunidade seguem sendo um mistério. “A grande pergunta é: há uma base única para todos os transes? O que a neuropsicologia tem indicado é que não”, afirma Paulo Dalgalarrondo.
O dom da cura
É possível curar doenças graves em cirurgias espirituais que duram menos de um minuto?O dom da cura
Todo dia, a sede da Federação Espírita de São Paulo (Feesp) recebe cerca de 7 mil pessoas, a maioria em busca de auxílio espiritual para curar uma doen ça. Muitas acabam assistindo a uma palestra sobre a doutrina espírita e tomando um passe, uma espécie de energização oferecida pelos médiuns. Já os casos mais graves são selecionados para um tratamento diferente: a cirurgia espiritual, como a que acontece no Centro Espírita Caminho da Luz nas quintas-feiras à noite. Lá, numa sala escura, 10 médiuns ficam sentados com os olhos fechados e as mãos espalmadas para cima. Deitado numa cama, o paciente é coberto com um lençol até metade do corpo. Dois médiuns permanecem perto dele, percorrendo as mãos pela parte do corpo que será operada, mas nunca tocando no paciente. Segundo a doutrina espírita, essa sessão, que dura menos de um minuto, serve para mandar energias espirituais ao doente. “Um fluido, uma espécie de névoa, sai do nariz, da boca, das mãos dos médiuns, vai enchendo a sala e então é transferido para a pessoa”, explica o engenheiro mecânico Eduardo José Monteiro (na foto ao lado), organizador da ala cirúrgica do centro. São 40 pessoas operadas a cada noite e outras 70 que passam por uma espécie de consultório espiritual – e a maioria costuma sair de lá satisfeita.
Uma pesquisa de 1999, feita por Cleide Canhadas, mestra em ciências de religião, mostrou que 86% das pessoas que procuravam centros espíritas em São Paulo tinham algum problema de saúde. Desses, 42% tinham distúrbios emocionais ou psíquicos, 12% câncer ou aids e 15% problemas ginecológicos, abdominais ou glandulares. “Constatei que essas pessoas foram ao centro não por falta de opções, mas porque estavam insatisfeitas com o tratamento tradicional”, afirma Cleide. De 115 entrevistados que participaram da pesquisa, todos disseram que melhoraram depois da visita ao centro.
Se 100% das pessoas se sentiram melhor depois dos rituais de cura, como a ciência explica esse sucesso?
Na verdade, a ciência mal tenta explicar. Primeiro, porque a cura espírita descrita acima é um fenômeno exclusivamente nacional – o Brasil é o único país do mundo onde o espiritismo virou uma doutrina cristã, com milhões de seguidores. Isso faz com que nenhum grande centro internacional de pesquisa médica se interesse pelo tema. Segundo, porque mesmo por aqui há pouco interesse no assunto. “É difícil conseguir financiamento público para esse tipo de pesquisa”, diz Frederico Camelo Leão, psiquiatra do Núcleo de Estudos de Problemas Espirituais e Religiosos da USP. “Os recursos são limitados e temos de disputar o dinheiro com assuntos mais visados, como o genoma, por exemplo.”
As poucas teses sobre o benefício da cura espiritual apontam numa direção: efeito placebo. Se o tratamento traz benefícios psicológicos para o paciente, acaba tendo efeitos reais no corpo, assim como um remédio de mentira, um placebo. E os benefícios se concentrariam em 3 alterações fisiológicas:
1) Mudanças no sistema nervoso autônomo, responsável por nossos movimentos involuntários, como a respiração e os batimentos cardíacos. Doenças desencadeadas ou agravadas por causas emocionais (como asma, alergia e taquicardia) podem ter grande melhora com o tratamento espiritual, já que estão fortemente ligadas a fatores psicológicos.
2) Se a pessoa se sentir mais protegida, o sistema imunológico, responsável pela defesa do corpo, pode produzir mais linfócitos T, anticorpos essenciais no combate a algumas doenças, como o câncer.
3) A calma que o tratamento espiritual traz pode influenciar o sistema endócrino a produzir mais hormônios que auxiliam o tratamento de males como o estresse e a ansiedade.
Essas mudanças, que têm origem no cérebro e efeito por todo o corpo, acontecem com mais intensidade dependendo dos detalhes do ritual de cura. “Assim como o placebo tem de ser amargo e de um formato especial para fazer efeito, a cura espiritual também depende de um trabalho psicológico bem feito”, afirma Renato Sabbatini, professor de medicina da Unicamp. E também do quanto a pessoa acredita no processo. “O tratamento só funciona quando inserido num contexto cultural. Não faria o menor efeito em um norueguês, por exemplo, mas faz todo sentido para os brasileiros porque faz parte da nossa cultura”, afirma Geraldo Ballone, professor de psiquiatria da PUC Campinas. A maioria das comunidades espíritas não considera a cura espiritual um simples efeito placebo, mas concorda que o tratamento deve servir como um apoio ao doente. “Nos preocupamos para que não haja fanatismo’, afirma Cristiane Lobas, superintendente da entidade Nosso Lar. “Sabemos que a cura espiritual pode acontecer, mas sempre orientamos as pessoas a que procurem ajuda médica. O tratamento que oferecemos é um coadjuvante.”
O mistério da psicografia
O mistério da psicografia
Como os médiuns conseguem dar detalhes do morto nas mensagens que psicografam?
Quando todas as tentativas de cura falham e a morte chega, muita gente acaba recorrendo novamente aos médiuns. Desta vez, para se segurar em outro tipo de esperança: a de que o familiar que morreu esteja vivo – e em paz – em outro mundo. É aí que entram aqueles a quem se credita o dom de falar com os mortos por meio de pinturas, ouvindo vozes ou em cartas psicografadas. A psicografia é objeto de discussão há muitas décadas, especialmente após o mineiro Chico Xavier ficar famoso. Durante seus 92 anos de vida, ele escreveu milhares de mensagens, que foram compiladas em mais de 400 livros. As cartas particulares, com nomes, apelidos íntimos e sobrenomes de pessoas mortas, fizeram dele um consolador das tristezas do luto. E despertaram a curiosidade sobre o que estaria por trás daquelas misteriosas linhas.
Quando todas as tentativas de cura falham e a morte chega, muita gente acaba recorrendo novamente aos médiuns. Desta vez, para se segurar em outro tipo de esperança: a de que o familiar que morreu esteja vivo – e em paz – em outro mundo. É aí que entram aqueles a quem se credita o dom de falar com os mortos por meio de pinturas, ouvindo vozes ou em cartas psicografadas. A psicografia é objeto de discussão há muitas décadas, especialmente após o mineiro Chico Xavier ficar famoso. Durante seus 92 anos de vida, ele escreveu milhares de mensagens, que foram compiladas em mais de 400 livros. As cartas particulares, com nomes, apelidos íntimos e sobrenomes de pessoas mortas, fizeram dele um consolador das tristezas do luto. E despertaram a curiosidade sobre o que estaria por trás daquelas misteriosas linhas.
Perito especializado em análises datiloscópicas e grafotécnicas, Carlos Augusto Perandréa analisou a carta atribuída a Ilda Mascaro Saullo, que morreu de câncer em 1977 na Itália. O bilhete em italiano, língua que o médium desconhecia, foi comparado com um cartão-postal escrito por Ilda. A pesquisa transformou-se no livro A Psicografia à Luz da Grafoscopia, que detalha, por exemplo, que as letras “t” do cartão escrito por Ilda e da carta de Chico Xavier tinham o mesmo tipo de ligação com as demais, a mesma abertura das hastes e a mesma barra de corte da letra. Segundo o perito, a mensagem era um híbrido entre a forma de escrever do médium e da italiana.
O depoimento de parentes que tiveram cartas psicogradas também impressiona. Para a juí za Douglasy Velloso, a despedida do pai chamando-a de Cuca trouxe a certeza de que era ele por trás da carta psicografada pela médium Martha Thomaz. Douglasy visitou o centro espírita Grupo Noel em abril, para ter notícias do pai. “Ele me chamava de Cuca e ninguém ali sabia disso”, diz ela.
Segundo estudo de Paulo Rossi Severino, que analisou 45 cartas psicografadas por Chico Xavier, 35% dos parentes consideraram a assinatura idêntica à do morto e 42% conseguiram enxergar alguma peculiaridade que o médium não teria como conhecer. Esses números podem comprovar duas visões opostas. Primeiro, que uma parte considerável das cartas parece ter origem no contato com uma pessoa morta. Segundo, que a maioria das cartas não contém semelhanças com a letra do falecido nem revelações da família.
Para muitos cientistas, esses números são suficientes para afimar que tudo não passa de acaso. “A tradição científica entende que as informações certas que o médium passou nas cartas foram apenas coincidência”, afirma o psiquiatra Frederico Camelo Leão, da USP. “Quem procura outra explicação deve tentar encontrá-la na religião.”
E a sensação comum entre os médiuns de acreditar que não foram eles que escreveram aquilo que psicografaram? Numa entrevista descrita no livro Por Trás do Véu de Ísis, de Marcel Souto Maior, Chico Xavier faz a pergunta: “Serão real mente dos nomes que as assinam as páginas então produzidas? Eu não poderia responder precisamente, porque a minha consciência como que dorme. De uma coisa, porém, julgo estar certo: não posso considerar minhas essas páginas porque não despendi nenhum esforço intelectual ao grafá-las”. Psicólogos e psiquiatras explicam esse fenômeno a partir da idéia de inconsciente. Como acontece com sonâmbulos ou pessoas em transe, nossa mente pode nos levar a ações que não faríamos em condições normais. “Hoje sabemos que o inconsciente pode levar o homem a fazer coisas extraordinárias, sem que a autoria precise ser atribuída a outros seres”, afirma o psicólogo e filósofo José Francisco Bairrão.
No que psicólogos e médiuns concordam é que a psicografia pode servir de consolo para quem enfrentou a morte de um parente querido. Cartas psicografadas têm em comum mensagens de esperança, amparo à família, amor e perdão. Segundo a pesquisa de Paulo Rossi Severino, o conselho para cultivar pensamentos positivos está em 82% das mensagens. Como a carta em que o filho pede aos pais: “Devo pedir que vocês não escutem, em momento algum, a voz da revolta”. Ou ainda: “Mãezinha e papai, nós continuamos sendo apenas um, pois o nosso amor é imortal, porque trazemos em nossa alma a imortalidade”.
“O luto é um processo de reparação e elaboração da perda. As pessoas buscam uma série de formas de lidar com suas dores, e a psicografia, inserida na questão religiosa, é uma delas”, afirma a psicóloga Maria Julia Kovács, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte da USP. Tem mais. A seguir, você vai ver que a mediunidade não apenas apóia as pessoas que têm de lidar com a morte como também está ajudando policiais brasileiros e americanos a esclarecer assassinatos e encontrar criminosos.
Os médiuns a serviço da justiça
Os médiuns a serviço da justiça
Eles ajudam a polícia a esclarecer crimes – e também podem atrapalhar as investigações.
A gaúcha Iara Marques Barcelos estava presa havia dois anos acusada de ter assassinado o amante, o tabelião Ercy Cardoso. “Ela negava o crime, mas eu não tinha provas de sua inocência”, diz Lucio de Constantino, o advogado de defesa. Foi então que, em 2006, a família de Iara apareceu com uma carta psicografada. A mensagem tinha sido escrita num centro espírita de Porto Alegre e era atribuída ao homem assassinado. “O que mais me pesa no coração é ver a Iara acusada desse jeito, por mentes ardilosas como as dos meus algozes”, dizia a carta. O advogado decidiu juntar o texto às provas do processo. E os jurados acabaram inocentando Iara.
Em 1925, o escritor britânico Arthur Conan Doyle afirmava que no futuro os policiais seriam ou, pelo menos, contratariam médiuns para resolver crimes. A previsão do célebre pai de Sherlock Holmes se mostrou correta. Nos EUA, já existe um grande comércio envolvendo detetives, policiais e médiuns, que costumam cobrar cerca de US$ 1 000 para dar dicas de desaparecimentos e também de crimes sem solução.
Os detetives mediúnicos usam uma técnica chamada pelos espíritas de psicometria: juntam o nome da vítima e a data do crime e, com a ajuda de algum objeto do morto, se colocam na pele da pessoa agredida e dão detalhes sobre local, causa da morte e culpados. Cabe aos policiais verificar as dicas.
“Sei que sou contratada como último recurso, quando a polícia já não sabe mais o que fazer com o caso”, diz Noreen Renier, uma médium investigativa que fez fama resolvendo casos misteriosos. De acordo com sua contabilidade, ela já participou em mais de 600 investigações, a maioria com sucesso. Além do delegado da Flórida, do começo desta reportagem, ela ajudou um agente do FBI a encontrar o lugar exato de um avião desaparecido. Noreen foi a única vidente que deu palestras no FBI sobre suas técnicas.
A relação tão próxima entre criminologia e espiritualidade nos EUA é mais comum do que se imagina. Apesar de quase não existirem estudos sobre o assunto (os investigadores não gostam de admitir que precisam desse recurso tão pouco científico para resolver crimes), uma pesquisa feita em 1993 com delegacias das 50 maiores cidades americanas indicou que 35% delas já tinham se valido de médiuns. Mas é tudo por baixo dos panos. Oficialmente, o governo americano nega. O FBI e o Centro Nacional de Crianças Desaparecidas rejeitam a possibilidade de trabalhar com videntes.
O que os mais céticos dizem é que na maioria dos casos não são os policiais que procuram os médiuns, mas o contrário. “Por lei, a Justiça tem de ouvir todas as pessoas que entram numa delegacia falando que têm informações sobre um crime. Isso atrasa o trabalho, porque toma muito tempo ir atrás das pistas, inclusive daquelas sem fundamento”, afirma o ilusionista americano James Randi, que ofereceu US$ 1 milhão a quem provar que fenômenos sobrenaturais existem. De fato, o caso da menina inglesa Madeleine McCann, que desapareceu em uma praia portuguesa em 2007, recebeu mais de 1 000 palpites de videntes. Alguns foram testados, mas até hoje nenhum acertou o paradeiro da menina.
A maior crítica que se faz a esses profissionais é que eles não colhem informações por meio de um dom sobrenatural, mas por adivinhação. É muito comum médiuns darem dicas vagas, como “o corpo está num lugar deserto” ou “eu vejo água”. A partir de dados que a própria família da vítima passou, o vidente dá informações óbvias e mede a rea ção dos clientes. Assim, a pessoa se ilude e pensa que o médium está dizendo novidades.
No Brasil, a relação entre médiuns e Justiça tem características muito particulares e envolveu até o mais conhecido espírita do país, Chico Xavier. Em 1976, um caso de assassinato em Goiânia seria um bom enredo para filme de ficção. José Divino Nunes, então com 18 anos, foi acusado de matar seu amigo de infância, Maurício Garcez Henrique, com um tiro no peito. O processo contra José Divino corria na Justiça havia dois anos quando os pais da vítima receberam uma carta psicografada por Chico Xavier, de autoria de Maurício. O texto inocentava o amigo e dizia que o morto estava muito incomodado com a acusação contra José. “Fui eu mesmo quem começou a lidar com a arma”, afirma a carta, que dava detalhes da cena do crime. Também mandava lembranças à família por meio de Xavier, que morava em Minas e não conhecia o caso. O que chamou a atenção de todos os jurados foi a assinatura da carta, semelhante à do assassinado. Numa decisão inédita no país , o documento foi incluído no processo e José Divino, inocentado.
A Justiça brasileira permite que os advogados usem cartas psicografadas como provas judiciais, mas elas podem ser facilmente contestadas pelos adversários no processo. “Não é ilegal usar documentos psicografados, mas isso só funciona porque quem os avalia são os jurados, que têm cultura e religiãovariadas”, afirma Renato Marcão, jurista e promotor público de São Paulo. “Já que não há como checar a fidelidade desse tipo de informação, nada impede que seja retirado do processo.”
Ainda restam perguntas sobre o assunto. Por que o espírito nunca revela o real culpado na carta psicografada? Será que todos os médiuns detetives contam apenas com a sorte para resolver crimes? Por via das dúvidas, é bom não se esquecer do caso da americana Sylvia Browne. Há mais de 40 anos, a vidente ajuda a resolver assassinatos e desaparecimentos – e dá palestras semanalmente em um programa de televisão. Em 1999, a avó de uma menina desaparecida foi pedir conselhos a Sylvia. A resposta que ouviu foi digna dos episódios de CSI: “Ela não está morta. Foi colocada num barco e levada para o Japão, onde virou escrava.” A avó gelou. Alguns meses depois, porém, o molestador de crianças Richard Lee Franks confessou ter matado a menina. Ao contrário de todas as outras vezes em que alardeou seus talentos mediúnicos, Sylvia não se pronunciou sobre esse caso. O corpo estava enterrado não no Japão, mas a menos de 20 quilômetros de casa.
As flores de Claudia Rosa
As flores de Claudia Rosa
Claudia Rosa estava lavando louça em casa quando ouviu vozes: “Pega lápis e papel”. Acostumada com sua mediunidade desde os 18 anos, a dona-de-casa resolveu obedecer. Sentou-se à mesa e pintou as formas geométricas que as vozes pediam. Depois as coloriu com giz de cera, mas ainda não estava satisfeita. Foi a uma loja de material de pintura e lá se deixou guiar para comprar telas e tinta acrílica. Claudia Rosa não era artista, mas acabou se especializando em pintar com as mãos. Os temas florais são os favoritos dos espíritos que ela crê receber. Nenhum quadro demora mais de 15 minutos para ficar pronto.
De engenheiro a médium de cura
De engenheiro a médium de cura
O engenheiro mecânico Eduardo Monteiro é médium de doação de energia nas cirurgias espirituais. “Enxergo uma bruma, como se o chão fervesse, e transfiro isso para o paciente”, diz Eduardo, de 52 anos, que já fez pintura mediúnica e acredita ter incorporado um espírito. “Sempre me questiono se o que vejo não é ilusão, já que sou um cara cético, da matemática. Mas o plano espiritual dá uma comprovação cada vez que fico muito questionador”, afirma.
As vozes de Nancy
As vozes de Nancy
A enfermeira Nancy Cesar foi criada em uma família católica. Na adolescência, as missas dominicais eram obrigatórias – até atrapalhavam quando ela queria sair nos sábados à noite. Nancy só percebeu que talvez estivesse seguindo a religião errada quando, aos 20 anos, começou a apresentar comportamentos estranhos. Às vezes, sem perceber, o tom da sua voz mudava. Dizia coisas desconexas e não se lembrava do que havia dito. Nancy passava mal e se apavorava com a sensação. Hoje, aos 46 anos, depois de ter estudado a doutrina espírita por mais de uma década, ela se considera uma médium. Acredita que seu dom é a polifonia. “Eu nem escuto, mas os espíritos falam pela minha voz.”
Texto Aryane Cararo e Karin Hueck
Revista Super Interessante
maio2008
Texto Aryane Cararo e Karin Hueck
Revista Super Interessante
maio2008