2017-09-01
NÃO CRER EM NADA
Na vida corrente, noventa e nove por cento dos nossos pensamentos são egocêntricos. “Porque sofro? Porque tenho inimigos?”.
Descobri que é necessário, absolutamente necessário, não crer em nada. Quer dizer, devemos crer em algo que não tem forma nem cor – algo que existia antes do aparecimento de todas as formas e de todas as coisas. Isso é muito importante.
Mas quaisquer que sejam o deus ou a doutrina nas quais vocês creiam, se vocês se apegam, suas crenças serão mais ou menos fundadas sobre uma idéia egocêntrica.
Vocês se esforçam para ter uma fé perfeita a fim de se salvarem. Ora, atingir esta fé perfeita tomará um certo tempo. Vocês se engajarão em uma pratica idealista.
Como procuram continuamente realizar vosso ideal, não terão mais tempo livre para a serenidade.
Mas se estão sempre prontos a aceitar tudo o que vemos como um fenômeno procedente do vazio, vocês terão nesse momento a serenidade perfeita.
É, pois indispensável a todos não crer em nada. Mas nada não quer dizer o nada. Há qualquer coisa, mas esta qualquer coisa esta sempre pronta a tomar uma forma particular, e sua atividade segue certas regras, uma teoria, ou uma verdade.
É isso que chamo Natureza-Buda, ou Buda mesmo.
Quando essa existência é personificada, nós a chamamos Buda; quando nós a compreendemos como verdade última, nós a chamamos Dharma; e quando aceitamos a verdade e agimos quase como Buda, ou segundo a doutrina, nós nos chamamos Sangha.
Há três formas de Buda, mas é na realidade uma única existência que não tem nem forma nem cor, e que esta sempre pronta a tomar forma e cor.
Isso não é apenas uma teoria. Isso é o ensinamento do budismo. É a compreensão da vida que nos é indispensável.
Sem esta compreensão, nossa religião não nos ajudará. Ficaremos imobilizados por nossa religião, e teremos por causa dela ainda mais inimigos.
Eu ficaria muito feliz se vocês se tornassem vítimas do budismo – mas vocês não o serão a tal ponto. Esta compreensão é, pois muito, muito importante.
Durante zazen, escutarão talvez a chuva tombar do telhado na escuridão. Mais tarde, a bruma maravilhosa atravessará as grandes árvores, e mais tarde ainda, quando as pessoas começarem o seu trabalho, eles verão a beleza das montanhas.
Mas alguns ficarão enjoados se de manhã em seus leitos ouvem a chuva, porque eles não sabem que mais tarde verão o belo sol se levantar ao leste.
Se nossa mente se concentra sobre nós-mesmos, teremos preocupações desse gênero. Mas se nós nos aceitamos como a materialização da verdade, ou Natureza- Buda, não teremos preocupações. Pensaremos: “Agora, chove; mas não sabemos o que se passará daqui a um instante.
Na hora de sair, talvez esteja muito bom, ou tempestuoso. Pois nós não sabemos nada, apreciamos agora o ruído da chuva”. Essa é a boa atitude.
Se vocês se compreendem como uma temporária materialização da verdade, não terão jamais nenhuma dificuldade. Apreciarão o que vos cerca, e se apreciarão como uma maravilhosa parte da grande atividade de Buda, mesmo no meio das dificuldades.
É essa nossa maneira de viver. Segundo a expressão budista, deveríamos começar pela iluminação, continuar pela prática, e em seguida pelo pensamento.
O pensamento é geralmente bastante egocêntrico. Na vida cotidiana 99% de nossos pensamentos são egocêntricos: “Porque será que sofro? Porque tenho inimigos?”.
Essa espécie de reflexão forma 99% de nossos pensamentos.
Quando estudamos uma obra científica ou lemos um sutra difícil, somos bem rapidamente envolvidos pela sonolência e o desejo de dormir.
Ao contrário, estamos sempre bem despertos e muito interessados desde que o assunto for nós mesmos.
Mas se a iluminação vier primeiro, antes do pensamento, antes da prática, nosso pensamento e nossa prática não serão egocêntricas.
Por iluminação, quero dizer não crer em nada, crer em alguma coisa que não tem nem forma nem cor, que está pronta para tomar forma e cor.
Esta iluminação é a verdade imutável. É sobre esta verdade original que deveria se fundar nossa atividade, nosso pensamento e nossa prática.
Do livro: “Esprit Zen, esprit neuf” – pag. 146 – de Shunryu Suzuki
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